sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Muitas Ana´s tiveram que morrer para essa reforma acontecer...

A Lei nº 12.015, de 7/8/2009, modifica diversos artigos do Código Penal referentes aos crimes sexuais, como estupro, assédio sexual, atentado ao pudor, exploração sexual e tráfico de pessoas. Realmente, precisávamos aprimorar os dispositivos que regem o assunto, corrigindo distorções antigas que tratavam homens e mulheres de forma diversa e muito desigual.
Anteriormente, a mulher figurava como potencial vítima na grande maioria dos delitos previstos na lei. O Título VI do Código Penal de 1940, que cuidava do assunto em tela, chamava-se Dos Crimes Contra os Costumes, reduzindo a sexualidade feminina a meros padrões morais ultrapassados. Agora a abordagem passou a ser mais equitativa em termos de gênero e, então, mudou-se a denominação do Título VI para Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, o que já é um passo no sentido do respeito aos direitos humanos.
O crime de estupro (artigo 213 do Código Penal), anteriormente definido como "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça", passou a ter redação de maior abrangência, equiparando homens e mulheres no polo passivo do delito, a saber: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso." A pena continua a mesma, reclusão de 6 a 10 anos, mas há um parágrafo que aumenta a pena para de 8 a 12 anos se da conduta resultar lesão corporal de natureza grave ou se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos. No entanto, se da violência praticada resultar a morte, a pena será de 12 a 30 anos.
Cabe observar, a respeito dessas alterações, que o artigo 213 do Código Penal, embora tenha acertado ao determinar que tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas do delito (antes só a mulher poderia ser vítima de estupro), cometeu o exagero de considerar igualmente grave a prática de qualquer "outro ato libidinoso". Ora, esse era o grande equívoco do revogado artigo 214 do código, que considerava atentado violento ao pudor, com pena mínima de 6 anos, a prática de quaisquer atos libidinosos diversos da conjunção carnal (conjunção carnal é o ato sexual vaginal). A nova lei, em vez de corrigir esse excesso de abrangência e separar as condutas, acabou repetindo a frase que abarca tudo, punindo com 6 anos de reclusão, no mínimo, um beijo lascivo, por exemplo. Talvez a intenção do legislador tenha sido equiparar ao estupro a relação sexual oral e anal, da qual o homem também pode ser vítima, mas teria sido preferível dar às coisas o nome que as coisas têm, em lugar de camuflá-las com uma linguagem imprecisa e demasiado abrangente, geradora de possíveis injustiças. Sim, porque não vejo juízes aplicando 6 anos de reclusão, em regime inicial fechado, a um sujeito que tenha atacado uma mulher aos beijos e afagos apenas. A sociedade merece ser protegida desse tipo de agressor, que, em geral, é compulsivo e pratica delitos em série, podendo facilmente evoluir de atos libidinosos de menor gravidade para o estupro.
Em relação à ação penal também houve modificação, porém não exatamente a que esperávamos. É que, anteriormente, a ação penal relativa aos crimes contra os costumes era, em regra, privada - ou seja, nos casos de estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, rapto e outros delitos desse teor, era de iniciativa exclusiva da vítima, com algumas exceções. Assim, a mulher de classe média, com possibilidade de pagar para processar seu agressor, não podia contar com a atuação do Ministério Público para dar início à ação penal. Por essa razão se afigurava urgente modificar esse dispositivo, para que fosse estabelecida a ação penal pública incondicionada no caso de crime sexual.
A nova lei, porém, não trouxe essa inovação, ficando no meio-termo: determina que a ação penal seja pública, porém condicionada a representação. Tal alteração não satisfaz, porque cria dificuldades na apuração dos fatos e supõe que, para a vítima de crime sexual, denunciar seu agressor possa ser um constrangimento pelo qual talvez não queira passar. Assim, deixa a seu critério pedir a propositura da ação. Essa concepção é do tempo em que a sociedade não aceitava os direitos sexuais femininos. Por isso a decisão de exigir a "representação" para autorizar que o Estado investigue e processe seu agressor é arcaica e burocrática. Outro problema da representação é o prazo decadencial de seis meses. Se a vítima não acionar a Justiça nesse prazo, perde o direito de fazê-lo. Por vezes é preciso mais tempo do que seis meses para que a vítima se recupere do trauma e perceba a importância de punir seu agressor. Enfim, é de lamentar que a nova lei não tenha ido mais longe para amparar com maior eficiência as vítimas de crimes sexuais. Mesmo porque é de interesse social que isso ocorra. A decisão de processar não pode ficar a critério da vontade individual.
Por fim, a nova lei traz a novidade de criar a figura do crime de estupro contra "pessoas vulneráveis", definidas como menores de 14 anos ou portadoras de deficiência mental ou enfermidade ou condição que as impeça de reagir. Nesse caso, a pena é mais alta, passando para de 8 a 15 anos de reclusão. Tal dispositivo (artigo 217-A da Lei nº 12.015/2009) pode criar mais problemas do que solucioná-los. Além de a pena ser muito alta, o deficiente mental fica impedido de manter relação sexual. Verifica-se, portanto, que houve recrudescimento de penas e a tipificação de novas modalidades de agressão sexual. No caso de estupro de vulnerável, a ação penal é pública incondicionada. Os processos em que forem apurados os crimes sexuais deverão correr em segredo de Justiça.
A nova lei foi um avanço, embora apresente alguns problemas que deverão ser resolvidos pela jurisprudência. Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, ex-secretária nacional dos Direitos da Cidadania, é autora, entre outros, dos livros A Paixão no Banco dos Réus e Matar ou Morrer - o Caso Euclides da CunhaSite: www.luizanagibeluf.com.br
---Publiado em O Estado de S.Paulo (SP), 31/08/09.

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