Série de reportagens iniciada neste domingo mostra a escalada covarde dos homicídios de mulheres
Gilmara de Oliveira, 28 anos, celebra a primeira gravidez. Fernanda Martins, 32, escolhe vestidos para levar as três filhas à igreja. Maria do Socorro da Silva, de 27, está na fila do embarque para voltar ao Brasil, depois de trabalhar por 24 meses na Espanha. Andréia da Silva, de 16, desdobra-se em mil para organizar o aniversário de um ano dos gêmeos e estudar para o vestibular. As amigas Eliziele Dionízio, 23 anos, e Gleiciane Gomes, 17 anos, voltam felizes de uma festa. Pausa. As histórias das seis mulheres foram interrompidas um pouco antes do fim da gestação, da seleção das roupas, do início do voo, da festa. Tudo não passa de desejos de familiares e amigos que ficaram na saudade. Gilmara, Fernanda, Socorro, Andréia, Eliziele e Gleiciane estão mortas, assassinadas de forma covarde em 1998, 2002, 2009, 2010, na madrugada de ontem. Deixaram de viver por serem mulheres.
Não foram as únicas. Facadas, tiros, pedradas, foices, machados, arame e chaves de roda foram os instrumentos utilizados para assassinar mais de 4,5 mil mulheres no ano passado em todo o Brasil. É fácil matá-las. Estupros coletivos, torturas psicológicas e físicas, negligências e discriminação – ora mascarada, ora pública - sufocam diariamente brasileiras. De todas as idades - desde a menina de dois anos estuprada e morta a golpes de enxada no interior do Ceará à senhora de 76 anos estrangulada pelo companheiro no Rio de Janeiro. E de todas as classes sociais.
Em Minas Gerais, dados não oficiais, levantados pela reportagem a partir de informações da Polícia Militar e de notícias de assassinatos publicadas pela imprensa, revelam que pelo menos 48 mulheres foram assassinadas de janeiro até ontem, o que representa até agora uma morte a cada dois dias, aproximadamente. Cerca de 90% dos assassinatos foram praticados por ex-companheiros, quase sempre com requintes de crueldade. Ano passado, somente na capital mineira foram 71 mulheres assassinadas. Neste sábado, duas jovens foram executadas a tiros no meio da rua, durante a madrugada, na capital mineira. Uma terceira moça também foi baleada, mas, por sorte, conseguiu escapar.
A elevada proporção de mortes de homens - cerca de 90% das vítimas de homicídios - esconde o fenômeno do femicídio, ainda pouco estudado no país. O Brasil não produz estatísticas oficiais de homicídios por sexo, na contramão de países vizinhos, que, além de monitorar as mortes de mulheres, já tipificam o crime em leis. Costa Rica, Guatemala, Chile, Colômbia e El Salvador incorporaram no ordenamento jurídico a definição do femicídio. O tipo penal e os agravantes variam: podendo ser limitados aos assassinatos cometidos por companheiros e parentes ou para todas as mortes em contextos de relações desiguais entre homens e mulheres. México, Argentina e República Dominicana também estão discutindo alterações na legislação. Em toda a América Latina, o ritmo acelerado com que esses homicídios crescem indica o massacre por questões de gênero.
A série de reportagens "Fácil de matar", que o Estado de Minas publica a partir de hoje, traça o novo cenário das mortes femininas no país. Estimativas obtidas pela reportagem apontam aumento de cerca de 30% nesses crimes na última década. No Pará, chegou a 256%. Em Alagoas, 104%. A violência doméstica, sem resposta eficiente do Estado, apesar da aprovação da Lei Maria da Penha, persiste. Mas são cada vez mais comuns as mortes encomendadas por organizações criminosas ligadas ao narcotráfico, às redes de exploração sexual e às máfias das fronteiras.
Durante os últimos dois meses, a reportagem buscou os crimes, as vítimas e identificou os algozes, todos homens. A covardia segue uma mesma lógica, fundamentada em repetidas violações de direitos. No período da produção da reportagem, pelo menos 286 mulheres foram mortas no país. As tragédias, que serão contadas ao longo da semana, se perpetuam nas capitais, no interior e ultrapassam fronteiras, fazendo vítimas do outro lado do Oceano Atlântico. Em meio às histórias, uma mulher foi escolhida para dar voz às sobreviventes, reféns agora do medo. Tereza teve mais de 40% do corpo queimado depois de o marido derramar gasolina nela e atear fogo. Preso, ele não desistiu de matá-la.
Invisíveis
A dificuldade em mapear as informações é a primeira comprovação da invisibilidade do problema para o poder público. O levantamento feito pela reportagem considerou dados das secretarias de Segurança Pública, das polícias e dos movimentos feministas. Em média, 4,6 mulheres são assassinadas por 100 mil habitantes do sexo feminino. Podendo mais que dobrar em algumas cidades. Os índices se igualam ou mesmo superam, sozinhos, a taxa total de homicídios, incluindo mulheres e homens de países europeus ocidentais (3 a 4 por 100 mil), nos países da América do Norte (2 a 6) e na Austrália (2 a 3). Em relação à América Latina, o Brasil perde apenas para El Salvador, Guiana e Guatemala, onde grupos de direitos humanos já atuam para reverter o caos provocado pelas mortes. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS).
As únicas informações oficiais disponíveis no Brasil são do Ministério da Saúde com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Divergem, no entanto, dos números da segurança pública e são prejudicadas por subnotificações. A série histórica das certidões de óbito comprova o aumento dos homicídios no país. O número passa de 3,6 mil em 1996 para 4 mil em 2006. O próprio governo critica os dados. A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, ligada à Presidência da República, também ignora o fenômeno. Em nenhum dos pontos destacados pelo Plano Nacional das Mulheres a redução dos assassinatos aparece. Segundo a ministra Iriny Lopes, a prioridade é a prevenção da violência. As expectativas de reverter a matança recaem agora sobre a primeira mulher eleita para ocupar o Palácio do Planalto. Dilma Rousseff prometeu, no discurso de posse, "glorificar a vida de cada uma das brasileiras".
Fonte: Jornal Estado de Minas