terça-feira, 30 de março de 2010

Mulheres, polícia e mídia: a morte deve ser anunciada?

“A confirmação de que a mulher (Ana Carolina Menezes Assunção, 27 anos) foi vítima de um assassino em série parece não ter surpreendido William Chaves Pereira (30 anos). Ele disse que já havia esse comentário no bairro após os assassinatos de outras mulheres na região” (O Tempo, 04/02/2010).
Tenho levantado aqui e acolá certo debate com poucos amigos acerca das condições objetivas das mulheres. Venho colecionando críticas e acordos. Apesar de feliz, em certos momentos cheguei mesmo a pensar em não discutir mais a temática, haja vista que muitos têm atuado nessa empreitada e com muito mais respaldo institucional e intelectual do que eu. Contudo, há certos fenômenos que não podem passar despercebidos. Acontecimentos que, longe da crítica, parecem “estar tudo bem”, Mas, definitivamente, não estão. E, por mais que as autoridades tentem explicar com eufemismos e falas bonitas, a questão é muito séria. Muito séria mesmo e estou me referindo as recentes notícias sobre os crimes sexuais que vem acontecendo em Contagem e Belo Horizonte.
No dia 02 de fevereiro do presente ano poucos não foram surpreendidos com o chefe da Polícia Civil de Minas Gerais, Marco Antônio Monteiro de Castro e o delegado da Divisão de Homicídios do Barreiro, Frederico Razzo Lopes Abelha, comentando em rede nacional a ação de um assassino no Bairro Industrial, na cidade de Contagem e no Barreiro, bairro da cidade de Belo Horizonte. O meliante, a princípio, estaria associado a três homicídios por estrangulamento, todos ocorridos no ano passado (2009).
O pessoal da polícia acredita que pode ser mais do que três mulheres, mas por enquanto eles apontam o assassinato de Ana Carolina Assunção, 27 anos, empresária que foi em abril de 2009 estrangulada no banco traseiro do seu carro com sinais de violência sexual. O ato foi tão cruel que o filho dela - uma criança de 1 ano - foi encontrado adormecido sobre o seu corpo. O segundo caso é o da empresária Maria Helena Aguilar, 48 anos, encontrada morta em setembro de 2009. O terceiro é o da contadora Edna Cordeiro, 35 anos, encontrada nas mesmas condições em novembro de 2009. Como se não bastasse, o recalcitrante tratou não somente de matar, mas com requintes de crueldade violentou as mulheres. Numa clara ação sem controle, ainda deixou o esperma no corpo das vítimas. Algo está muito errado em tudo isso: a Polícia Civil informa que não poderia ter avisado antes a população sob pena de causar pânico e transtornos nos locais que foram encontradas as vítimas. O jornal O Tempo (03/02/2009) chegou mesmo a declarar que a Polícia Civil pediu a não veiculação das informações em janeiro de 2010. Não é preciso ir longe para saber que a Polícia Civil há muito já tinha conhecimento do ocorrido. E no Barreiro, local no qual morava uma das vítimas, muitos já falavam desses acontecimentos. De duas uma: ou (1) a polícia, na tentativa de fazer o seu trabalho, preferiu omitir os fatos e ganhar tempo para prender o meliante ou (2) a questão foi tratada com menos seriedade que merece, sem muita atenção e cuidado. Por lógica, não faz sentido a questão de “não causar pânico na população”, haja vista que até as recentes pesquisas do CNT/Sensus (2010) informam que um dos problemas que mais incomodam o brasileiro é a violência/criminalidade (22,9%), mesmo com a onda de queda dos índices nos últimos anos e as notícias de novas formas de policiamento e técnicas de segurança pública.
Desculpe-me as autoridades, mas é difícil convencer alguém para não sentir medo em tais condições. A cultura do medo já está disseminada desde a década de 80. Há pouco tempo, a Revista Veja tratou de mostrar o que acontece em Minas Gerais no campo da segurança pública. Não é possível que numa análise do geoprocessamento nenhum policial se atentou para a possibilidade da ação em série de um estuprador que, por ignorância, ainda deixou o esperma na vítima. Mais que isso, há tempos a SEDES (Secretaria de Estado de Defesa Social) vem trabalhando e revelando aos quatro cantos do planeta o trabalho das AISPs (Áreas Integradas de Segurança Pública), um projeto ambicioso, no qual, na mesma região trabalham a Polícia Civil e a Policia Militar. Ao comandante da Polícia Militar e ao delegado responsável pela área são cobradas metas diante de autoridades responsáveis pela segurança reunidas no modelo IGESP (Integração da Gestão em Segurança Pública), mais ou menos o COMPSTAT norte-americano. Novamente de duas, uma: (1) ou as reuniões não têm nenhuma serventia e são feitas para mostrar informações desejáveis ao secretário de segurança, ou (2) a polícia errou em não perceber e verificar inteligentemente a “onda” de estupros, desaparecimentos e homicídios no local, denominado zona quente de criminalidade. Somente agora, depois do esperma é que as autoridades resolveram colocar a boca no trombone. E não para por aí, a questão fica mais complexa quando existe a suspeita de que uma morte e um desaparecimento podem estar associados aos casos já mencionados. O primeiro é o caso da comerciante Adina Feitor Porto, 34 anos, a qual foi atacada em 27 de janeiro de 2009, no bairro Lindeia na região do Barreiro. O segundo é do desaparecimento da estudante de direito da PUC Betim, Natália Cristina de Almeida Paiva, 27 anos, desaparecida desde outubro de 2009. Em ambos foram encontrados somente os carros das vítimas. Não é preciso ser criminólogo para perceber que existe um padrão de comportamento e uma política de segurança baseada no silêncio da mídia e das autoridades. É neste sentido que seria pedir muito não ter medo. Penso até diferente, é bom que ele exista e que a população passe a cobrar da SEDES a efetiva eficiência dos programas e projetos pró-segurança. Creio ser de suma importância o funcionamento deles: que mais viaturas passem a fazer rondas nos locais, que a rede de “vizinhos protegidos” tenha fundamento, que o Sistema Integrado de Defesa Social realmente seja integrado e que a filosofia da “Polícia Comunitária” não passe de projetos e sonhos. Não é possível que diante de tantos e tantos projetos ainda exista espaço para crimes dessa natureza e que eles, por conseqüência, ainda fiquem sem punição.
Em entrevista aos jornais, as autoridades da Polícia Civil e da Polícia Militar têm confirmado um retrato-falado do suspeito elaborado a partir de informações de uma testemunha. A Polícia Militar colocou a PM2 em ação e está monitorando os suspeitos por 24 horas, o mesmo fez a PC com seus agentes. Nessa clara confusão de cabeças batidas, uma especialista foi convidada para ajudar nas investigações. Todo esforço é válido, todavia é curioso que em meio a tantos projetos não exista pessoas gabaritadas na Polícia Civil ou mesmo a Polícia Militar para atuar em casos como esses.
Um ponto positivo está sendo a uso do DNA, pois um suspeito está nas mãos do Estado que se esforça por cruzar o DNA do meliante com os casos mencionados. É bom ver esse tipo de trabalho, mas ele apareceu somente depois do registro da proximidade dos acontecimentos com as vítimas. A pergunta mais ingênua: “não era possível detectar tais casos pelo famigerado geoprocessamento?”, “não foram discutidos tais casos nas reuniões de integração da polícia onde coronéis, majores e delegados cobram metas? Por que não se tornou uma meta verificar a ocorrência dos estupros e desaparecimentos? Alguém resolveu não dizer nada para não causar pânico ou porque se tratava de mulheres mortas em um bairro não tão nobre da capital ou de Contagem?
Muitas interrogações que a mídia e a “sociedade organizada” sequer pensaram em fazer. Provavelmente porque, em primeiro, há muito a “sociedade organizada” realmente está segura entre muros e câmeras e, em segundo, é sabido que a mídia, na maioria dos casos, é pautada pela própria polícia. No momento, as autoridades estão a declarar que após a prisão do suspeito, “nenhum outro caso de abuso sexual foi registrado na região”. Ainda bem: não deveria ter nenhum caso com ou sem a prisão do predador. O Brasil é isso: primeiro acontecem os fatos, depois vem as discussões e contam-se os corpos, principalmente no campo minado da segurança pública. Por outro lado, se a polícia estiver errada na prisão do suspeito - e espero sinceramente que não esteja - é óbvio que o predador está à solta esperando a poeira baixar. Este é um caso de relações humanas nas quais o criminoso atua na oportunidade e isto requer tempo e paciência. Uma política de segurança assentada na prevenção se faz urgentemente necessária e obrigatória naquelas localidades.
É um truísmo repetir que a população não pode ficar refém da iminência e ação de um criminoso. E não é aceitável que em pleno Estado de Direito ainda tenhamos a capacidade de esconder informações e não revelar à população o que anda acontecendo. Não vou discutir se deve ou não causar pânico casos mencionados na TV ou nos jornais. O que vale é perguntar que pânico é esse. Em que medida alguém pode afirmar ou confirmar com legitimidade que deixar a mídia mostrar tais eventos uma anomia poderemos ter. Em Minas Gerais tudo é “confidencial”, “pode atrapalhar as investigações” ou “é coisa de segredo de Estado”, como se em uma guerra estivéssemos. Solicitar informação aos órgãos de segurança de Minas Gerais requer força de vontade para enfrentar uma burocracia sem limites. Estamos longe de ver muitas das informações estampados na internet ou nos jornais. Não sei o porquê, mas Otto Lara Resende (1902-1992), um jornalista mineiro de São João Del-Rei, disse que o “o mineiro só é solidário no câncer”. Não exagero ao afirmar que “nem no câncer”, pois acontecimentos sérios como os que estão ocorrendo no Barreiro e Contagem não pararam de saltar nas bocas miúdas e a população ainda se cala na cordialidade ao invés de estar ajudando e usando os próprios aparelhos da segurança pública como o “Disque Denúncia” (181) ou o “190”. Podem culpar o descrédito que a polícia tem com boa parte da população, mas não vejo outra forma se não continuar confiando nela e torcendo para que a prevenção passe a funcionar. É necessário que o dinheiro público alocado em projetos de segurança dê resultados. Finalmente, gostaria de sugerir um novo projeto, na esteira do “Fica Vivo”. Nada de novo, somente uma espécie de “Fica Vivo para Mulheres - FVM”. Um projetinho pequeno para atender mulheres violentadas, estupradas, espancadas, parentes de desaparecidos, vítimas de predadores sociais e todas àquelas que temem por sua vida e dos seus. O fato é simples, é porque tenho mulheres em minha vida e amo tanto elas quanto à todas que se deram o trabalho de ler o meu texto.
Lúcio Alves de Barros – mestre em sociologia e doutor em Ciências Humanas pela UFMG. Organizador do livro, “Mulher, política e sociedade”. Brumadinho/Belo Horizonte: Ed. ASA, 2009.
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Um comentário:

Bruno ZT disse...

Como é que um criminoso conseguiu atacar cinco mulheres sem ser detido pela polícia antes?

Só foram realmente atrás do culpado quando o caso repercutiu na imprensa. Aí sim acharam o maníaco. Se não fosse divulgado, os casos estariam até hoje sem solução.

Vale lembrar que a divulgação foi um furo de reportagem de um jornal de BH