sexta-feira, 3 de julho de 2009

O sonho da jovem Latifa

Esse é um conto escrito por mim coma temática sobre a violência contra a mulher. Esse conto foi inspirado no livros "Mulheres de Cabul", da premiada fotógrafa inglesa Harriet Logan, e "O Liveriro de Cabul", da jornalista norueguesa Åsne Seierstad, que retratam a realidade cultural, política e social desse do Afeganistão.
O sonho da jovem Latifa
Abdala Haad, 34, foi um mulçumano. Percorria a orla das praias de Vitória todos os dias. Vitória é uma pequena e bela cidade e capital do Estado do Espírito Santo. As praias de Vitória são belas, margeadas por prédios chiques de apartamentos caros. O calçadão tem hora e temporada para estar cheio de atletas, idosos, moças belas, famílias, carrinhos de bebês e corredores amadores. Pela manhã, bem cedo, os idosos e as mães ou empregadas domésticas passeiam com as crianças aproveitam o sol fraco e brisa fresca. No fim da tarde, os jovens, os adultos e os adolescentes se misturam entre caminhadas, corridas e bicicletas na busca pela beleza ideal.
Abdala era afegão, assistiu sua mulher ser presa, estuprada e morta pelo regime Taleban antes da queda pela invasão dos Estados Unidos. Latifa Haad havia se convertido ao cristianismo e exercia sua fé escondida dos olhos opressores do regime que defendia Alá. Laura Smith era uma jovem inglesa de 28 anos, assistente social e militante dos direitos das mulheres, trabalhava para uma ONG sediada nos Estados Unidos que prestava assistência ao povo afegão. Era magra, cabelos curtos e loiros naturais, pele branca que com o sol escaldante da região se avermelhava causando o contraste no seu corpo, seus olhos eram azuis como o mar e sua determinação em construir um mundo melhor naquele mundo destroçado pela irracionalidade, brutalidade e ignorância por si lembrava sua descendência do povo guerreiro celta. Laura morava no paquistão e prestava serviços para a ONU na Embaixada da Inglaterra.
Abdala Haad era professor e Latifa, sua esposa, era uma dona de casa vaidosa e desejosa pela liberdade feminina que havia no ocidente. O regime Taleban tomou o poder no Afeganistão em 1997, proibiu a música, a dança, proibiu as mulheres de irem à escola e impôs que todas, ao saírem de suas casas não usassem produtos de beleza, não se vestissem elegantemente de modo a chamarem a atenção e sempre, sempre, fora de suas casas vestissem a burkha.
Latifa deveria esconder sua pele morena, seus cabelos pretos e lisos e sedosos já não podiam receber o toque suave do vento, e a juventude e a vida de uma jovem de 25 anos deveriam ser escondidas pela insanidade. A burkha cobria todo seu corpo, era feita de um tecido grosso e grande para impedir que seu corpo bem torneado fosse moldado, o brilho que ainda restava em seus olhos escuros e grandes como uma jabuticaba eram ofuscados pela tela que havia na burkha e apenas servia para ela olhar e respirar. Latifa via Cabul, sua cidade e capital do Afeganistão, mas não era permitido a Cabul ver Latifa.
O regime totalitário e violento dos Talebans não conseguiu proibir que Abdala ensinasse sua amada esposa o conhecimento e o inglês que aprendera na juventude. Todas as noites, após, se alimentarem Latifa aprendia com seu esposo. O casal tinha um sonho de ir embora para a Londres e lá ter um filho. Ansiavam uma vida com liberdade, trabalho e oportunidades que haviam sido tiradas de seu pais pelo fundamentalismo absurdo e desumano do Talebans.
Laura acabara de chegar na sede da ONG quando Abdala entrara. Aos 15 anos Abdala se muda para Islamabad, capital paquistanesa, onde tenta a vida no comércio, na construção civil e na jardinagem. Aos dezessete anos Abdala consegue emprego como aqueles “faz-de-tudo” ou manunteção na casa do embaixador da Inglaterra. Disciplinado e dedicado, logo percebe a importância do trabalho e da pontualidade para os britânicos. Se vendo diante de uma oportunidade única, tratava dos jardins da esposa do embaixador como se fossem seus, era atento aos passos da única filha do casal, uma linda criança de oito anos que adorava brincar e ajudar nos cuidados com as flores.
A dedicação e inteligência de Abdala lhe renderam por meio dos contatos do embaixador inglês uma bolsa de estudos para o curso de história. Seu trabalho na casa da família inglesa foi seu passaporte para o crescimento intelectual, acadêmico e seu contato com o contagioso estilo de vida do ocidente. Formado, aos 24 anos, o professor de história Abdala Haad, retorna ao Afeganistão e retoma sua vida dando aulas e conhece Latifa, jovem linda e alegre de 21 anos que trabalhava na biblioteca e desejava conhecer o mundo.
Toda sua história de conquistas no Paquistão passa pela sua mente ao entrar naquela sala e ver aquelas fotos na parede. Eram fotos de mulheres brancas, negras, indianas, chinesa e crianças sorrindo e se abraçando. Todo aquele mundo diferente e atrativo que saltava daquelas fotos despertava a saudosa lembrança da família inglesa. Laura o observa e sorridente pergunta no que poderia ajudar. Com seu inglês britânico ele responde para Laura que fugira do Afeganistão e queria ir para a Inglaterra, que trabalhara na casa de um dos embaixadores daquele país europeu a alguns anos. Mesmo sabendo da condição política e social imposta pelos Talebans ao povo afegão, a opressão, as limitações, crueldades e medo, Laura pergunta o porque.
Adbala se senta, olha para o chão, respira fundo e com as mão trêmulas começa a contar as suas razões:
“ Antes da tomada do controle do país pelos homens Talebans eu tinha uma vida tranquila e estável. Dava aulas em algumas escolas de Cabul e minha esposa, Latifa, trabalhava em uma biblioteca das escolas. Éramos livres, estávamos construindo a nossa história, escutávamos nossas músicas, dançávamos ao som de cantores ocidentais e indianos. Latifa era bela e gostava de estar e se sentir bonita. Sua vaidade me encantava. Eu a queria sempre linda e arrumada....sem ofender as tradições mulçumanas, claro! Um dia Latifa conheceu um casal de brasileiros que trabalhavam em uma ONG francesa que cuidava de crianças no Afeganistão. Ela não me falou deles durante um tempo mas ela mantinha contato com eles e nesses contatos ela se converteu ao cristianismo. Eles éram cristãos. Era um casal jovem e tinham um filho de uns quatro anos quando os conheci. Roberto, Paula e Davi. Certo dia Latifa chegou em casa com uma Bíblia falando do Deus dos cristãos e eu olhando para seu rosto alegre e radiante me convenci de que a mensagem do Jesus dos cristãos era mais profunda e atraente do que a mensagem de Alá. Minha esposa não teve receio em me contar por que me conhecia. Eu jamais poderia ter raiva dos cristãos por que o que sou hoje devo a bondade de uma família cristã que não me discriminou por ser mulçumano e me confiou oportunidades.”
Laura, atenta, fitava em seus olhos negros e em seu rosto cansado pela viajem enquanto ele continuava após uma breve parada e uma profunda inspiração de ar.
“Nos tornamos cristãos e nos tornamos amigos dos brasileiros, mas tínhamos receio de nos manifestar abertamente por medo de sermos agredidos. Após o homens do Taleban assumirem o poder, muitos estrangeiros foram embora inclusive os brasileiros. Foram expulsos por que o regime descobriu que eram cristãos e estavam pregando a mensagem de Jesus e isso afrontava os talebans que são radicais e odeiam o ocidente e tudo que representa o ocidente. Para os talebans Alá estava sendo afrontado. Minha esposa foi denunciada.Ela não trabalhava fora na biblioteca mais por que o regime determinou que era proibido as mulheres trabalharem por dinheiro. Alguém, que não sei quem, ficou sabendo que na minha casa havia uma Bíblia. Os soldados talebans invadiram a minha casa pela manhã, quando eu havia saído para comprar comida e encontraram Latifa lendo a Bíblia. Latifa foi presa, arrastada pelas ruas de Cabul, chicoteada, tentei impedir ao vê-la sendo espancada mas também fui espancado e torturado. Fomos levados para o quartel onde Latifa foi estuprada na minha frente pelos soldados e degolada. Os talebans me disseram que era uma lição para ela e para mim que tínhamos afrontado Alá e o islã, que eu jamais esquecesse que só existia Alá. Fui preso e obrigado a ler o Corão todos os dias em voz alta por três meses. Faz um mês fui solto e fugi para o Paquistão”
Atormentada, a jovem inglesa não consegue impedir que seus olhos derramem as lágrimas da revolta e compaixão. Abdala lhe mostra as cicatrizes dos açoites a uma foto de Latifa que guardava escondido para não ser acusado de idolatria.
Três semanas depois os norte-americanos invadem o Afeganistão na procura por Bin Laden e derrubam o regime Taleban. Laura ajuda Abdala contratando-o como tradutor e durante a guerra, que teve o apoio e participação da Inglaterra, Laura e Abdala, agora amigos, se empenham em trabalhar nas campanhas de ajuda humanitária da ONU com os refugiados de guerra na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão.
Após um ano e meio do início da invasão norte-americana, Abdala e Laura vão para a Inglaterra para descançarem por alguns meses, se casam e vão ao Brasil em lua-de-mel. Roberto e Paula moravam em Vitória, Davi era missionário na Índia, e todos os dias de suas férias na cidade, Abdala e Laura caminhavam na Praça dos Desejos e dos Namorados, Praia do Canto, sentindo a brisa do mar, contemplando a liberdade e a belezas naturais desse país tropical que Latifa somente ouviu falar sem esquecer do compromisso deles em tentar fazer do mundo um lugar melhor para se viver.

André Silva – andreluizjornalista@hotmail.com
Jornalista e Especialista em Criminalidade e Segurança Pública
28 de junho de 2009

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