quinta-feira, 28 de julho de 2011

"Para acabar com a impunidade em crimes de gênero" - Entrevista com Nalu Faria pela Revista Fórum em Julho 2010

De acordo com Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres, o sistema judiciário brasileiro apresenta falhas graves em relação à plena execução da Lei Maria da Penha. Para ela, além dos entraves jurídicos, uma das maiores dificuldades para combater a violência de gênero é lutar contra a sua naturalização.
Apesar de ter sido sancionada em 2006 pelo presidente da República, a Lei Maria da Penha ainda não consegue assegurar proteção plena às mulheres vítimas de violência. De acordo com a Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher), a nossa legislação de proteção ao sexo feminino está entre as três melhores do mundo, mas encontra obstáculos para ser executada. “Temos uma formação social que reforça o machismo, ainda vemos casos de mulheres que procuram as autoridades para denunciar e são tratadas como culpadas, como se elas tivessem ocasionado essas agressões”, argumenta Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres.
Os casos de Eliza Samudio e Mércia Nakashima ganharam destaque por apresentarem elementos de forte potencial midiático. Mas, infelizmente, eles não são exceção na realidade brasileira. “Qualquer um pode procurar pelos homens que foram presos por matarem mulheres, e não vai achar nenhum. Eles podem até terem sido condenados, mas presos não”, sustenta Nalu. Confira a íntegra da entrevista com a ativista abaixo.


De acordo com dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), as denúncias recebidas pela Central de Atendimento à Mulher aumentaram 49% entre 2008 e 2009. Como você enxerga esse aumento, apesar da promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006?


Nalu Faria - Hoje a Lei Maria da Penha é muito conhecida e a Central de Atendimento à Mulher está mais atuante. Antes (da promulgação da lei) os casos de violência contra as mulheres eram mal notificados, mas agora isso está mudando porque as mulheres têm conhecimento dos seus direitos e se sentem mais encorajadas a denunciar. Sempre que há um grande número de denúncias de violência contra o sexo feminino vem a pergunta: será que aumentou a violência ou aumentaram as denúncias? Então, o aumento das denúncias quer dizer também que as mulheres estão mais informadas e conscientes dos seus direitos, pois sabem que a lei deve defendê-las.


Outro dia vi na televisão, num desses programas policiais, um policial perguntando a um homem, que havia batido em sua esposa, se ele conhecia a Lei Maria da Penha. Isso demonstra que as autoridades conhecem a lei e a estão fazendo cumprir. Mesmo assim, ainda existe um trabalho de debate e reflexão com as autoridades sobre isso, juntamente com a sociedade.


O Estado está preparado para aplicar a Lei Maria da Penha e a legislação de amparo à mulher?


Nalu – Completamente preparado, não. O Brasil é muito grande, e isso dificulta a disseminação de informações. Estaríamos preparados se o debate estivesse realmente implantado em todo país. Temos uma formação social que reforça o machismo, ainda vemos casos de mulheres que procuram as autoridades para denunciar e são tratadas como culpadas, como se elas tivessem ocasionado essas agressões. Sei de casos de mulheres irem à delegacia e ouvirem dos policias: "você deve ter feito alguma coisa pra ter apanhado".


Temos que implantar o debate em todos os níveis da sociedade e do governo. No Poder Judiciário, por exemplo, os erros são visíveis. Muitas mulheres são assassinadas mesmo após pedirem proteção das autoridades. Por não reconhecerem a situação de desigualdade de gênero que existe no Brasil, muitos de nossos juízes questionam até mesmo a constitucionalidade da Lei Maria da Penha.


Em relação ao machismo, como se pode trabalhar e mudar a mentalidade de homens que acreditam que a violência contra a mulher é algo normal?


Nalu - No que se refere ao poder do Estado, temos que acabar com a impunidade existente em relação a crimes contra mulheres no Brasil. Infelizmente, ela ainda é muito grande. Qualquer um pode procurar pelos homens que foram presos por matarem mulheres, e não vai achar nenhum. Eles podem até terem sido condenados, mas presos não. Então precisamos de medidas que rompam com a imunidade e criminalizem de vez este tipo de violência.


Outro ponto é trabalhar no âmbito da prevenção. A violência não acontece de uma hora pra outra, ela passa por um processo de agravamento. Quando alguém sabe que a mulher está apanhando muito do marido, a violência não começou com esse espancamento. Ela começa na desqualificação da pessoa, até que um dia chega à agressão física. No caso do goleiro Bruno (do Flamengo), por exemplo, você vai ver que há um histórico de violência contra algumas mulheres que conheceu.
As pesquisas confirmam: a cada 15 segundos uma mulher é assassinada no Brasil. Isso é algo inaceitável. E há uma naturalização tão grande da violência que as pessoas convivem com isso e não sabem como lidar. O debate deve desconstruir essa naturalização e despertar a consciência de que a violência é algo inaceitável.

De 2006 pra cá, a partir da aprovação da Lei, quais os maiores avanços no combate à violência contra a mulher que o Brasil presenciou? Em que aspectos ainda precisamos melhorar?


Nalu - Um grande avanço é o aumento no número de denúncias. Com isso temos mais possibilidades de lidar com o problema e saber o que realmente está acontecendo. Outro bom sinal é o incremento das políticas públicas de atenção às mulheres. Isso é sinal de que para combater a violência tem-se que acabar com a desigualdade de gênero.


A autonomia econômica das mulheres é outro ponto importante a ser trabalhado. Independência econômica perante o parceiro não é condição suficiente para que a mulher esteja livre da violência. Dados mostram que muitas mulheres falam que não se separam por conta da situação financeira, vinculada ao parceiro. O importante é que a mulher tenha uma autonomia pessoal e acredite que possa viver por contra própria. Essa questão é muito difícil de ser trabalhada, pois envolve um elemento subjetivo, enraizado em nossa cultura.
Ainda precisamos nos antecipar ao tema da violência. Trabalhar a questão da autonomia pessoal é conscientizar as mulheres de que elas não podem ficar em uma posição submissa ao homem, onde precisam ceder sempre para agradá-lo, como se fosse a condição para uma relação harmoniosa. São essas atitudes de controle que terminam em violência.

Em relação à exposição midiática do caso do goleiro Bruno, este fato pode fortalecer a luta em favor da erradicação da violência contra as mulheres?


Nalu - Isso vai depender do debate e da disputa que fizermos em relação a isso. Nesse caso, há elementos jurídicos que possibilitam a retomada de algumas decisões. Por exemplo, a demissão do Bruno, que pode não acontecer mais. Ou até mesmo o advogado dele, cogitando que a Eliza possa estar viva e esteja fazendo isso para se vingar dele. Se conseguirmos que as acusações sejam provadas, vira um caso exemplar positivamente. O Bruno confiava muito na impunidade, ele não tinha medo de ser preso. Temos que ter uma solução firme neste caso.

Fonte: Aads - Ações Afirmativas em Direitos e Saúde/Ipas Brasil

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