Para ex-modelo somali, Facebook é instrumento essencial no combate à circuncisão feminina
12 de março de 2011 | 10h 29
A somali Waris Dirie é muito mais conhecida por ter sofrido o violento ritual de mutilação genital feminina aos 5 anos do que por ter se submetido ao lamentável, mas indolor, papel de Bond girl na encarnação do agente secreto britânico vivida pelo ator Timothy Dalton.
Dirie, autora do best seller internacional Flor do Deserto, de 1998, tornou a violência rotineira contra mulheres da África e do Oriente Médio ainda mais conhecida quando suas memórias foram transportadas para o cinema. Flor do Deserto, o filme, com uma outra supermodel, a etíope Liya Kebede no papel de Waris Dirie, recria a dolorosa cena que Dirie quer gravar na memória coletiva para poupar outras gerações.
Descoberta em Londres aos 18 anos pelo fotógrafo Terence Donovan enquanto varria a lanchonete de fast food onde trabalhava, Dirie havia fugido de sua família de nômades aos 13 anos para escapar de um casamento forçado. Caminhou até a capital, Mogadiscio, e foi despachada num avião para Londres para trabalhar como doméstica para a família do embaixador da Somália.
Ela foi uma das mais solicitadas modelos negras da década de 90. Hoje, aos 45 anos, não desfila mais e vive em Viena, com cidadania austríaca, onde opera sua fundação Flor do Deserto. Dirie viajou o mundo como embaixadora da ONU para denunciar a mutilação genital feminina. Ela falou ao Estado por e-mail, de Viena.
Mulheres são as mais afetadas pela guerra, mas menos de 3% daqueles que assinam tratados de paz desde 1992 são mulheres. Como elas podem ser incluídas nos processos de paz?
O que você descreve é bastante lógico. Na maioria dos países, as mulheres dificilmente estão envolvidas em qualquer processo político, incluindo os de guerra. Se estivessem, muitos conflitos ao redor do mundo já estariam solucionados. Mulheres compõem metade de qualquer sociedade. O sistema político que ignora esse dado está fadado a enfrentar problemas cedo ou tarde. Em relação ao envolvimento de mulheres em processos de paz, eu acho que ele virá naturalmente, uma vez que mulheres sejam incluídas em todas das decisões políticas e sociais de um país.
Um livro recente do antropólogo Aud Talle diz que mulheres somalis morando na Noruega têm mudado sua atitude em relação à circuncisão feminina e agora se opõem à prática. Qual a importância das sociedades e governos ocidentais em pressionar as comunidades de imigrantes para pôr fim a essa prática? Qual a sua visão sobre a recente controvérsia na França em relação ao uso da burca?
O exemplo de mulheres somalis na Noruega demonstra o seguinte: se as mulheres imigrantes vivem em uma sociedade que mostra ativamente os papéis que as mulheres podem desempenhar na sociedade, elas vão adotar ao menos em parte essas atitudes no cotidiano. Acho que esse é um bom estímulo também para as mulheres ocidentais darem um bom exemplo e mostrar o que é ser uma mulher independente para mulheres vindas de um contexto cultural diferente.
Todas as meninas submetidas à mutilação genital também são forçadas a aguentar casamentos arranjados?
Nem todas, mas é muito comum. Casamentos arranjados, que são basicamente a venda da própria filha para outra família ou homem, e a mutilação genital são, na essência, sintomas diferentes da mesma doença. E essa doença é olhar para mulheres e tratá-las como se fossem objetos, não seres humanos.
Pessoas sempre dizem que mais mulheres no poder trarão mais justiça e igualdade. Contudo, num país como Bangladesh, onde há uma primeira-ministra e a líder da oposição é uma mulher, mulheres ainda são atacadas com ácido nas ruas, geralmente por recusarem casamentos arranjados ou investidas sexuais. Como explicar essas discrepâncias numa sociedade?
É como colocar uma mulher no topo de uma empresa dominada por homens e dirigida por uma cultura do "macho". Ela não vai fazer diferença, a menos que a cultura dentro da empresa mude também. O mesmo é verdadeiro para sociedades. São as sociedades que têm de mudar, não o sexo das pessoas no topo.
No livro The Honor Code, o filósofo ganense-americano Kwame Appiah disse que algumas práticas sociais, como pés enfaixados e atrofiados e a escravidão, chegaram ao fim em parte porque chega uma hora em que as pessoas que seguiam uma velha ordem são expostas ao ridículo e à vergonha. Você acredita que esse possa ser o caso da violência de cunho religioso contra mulheres?
Acho que a violência contra as mulheres nunca é baseada na religião ou na cultura, embora muitas vezes seja justificada dessa forma. A violência contra as mulheres é baseada no medo do poder e da força da mulher. Pense nisso: os homens têm dominado mulheres por tanto tempo... Você pode compará-los a um ditador, que também teme perder poder, dinheiro e influência se permitir aos presumivelmente mais fracos ter voz.
A liberdade de reprodução sofreu um revés nos Estados Unidos recentemente com iniciativas como o fim do financiamento da Planned Parenthood. Você acha que esses contratempos podem afetar a liberdade reprodutiva em países que dependam muito de ajuda internacional?
Espero que não. O controle de natalidade é extremamente importante em países em desenvolvimento, especialmente na África Subsaariana. Vários estudos têm demonstrado a forte relação entre o acesso ao controle de natalidade e a educação sexual e a saúde da mulher em geral. Além disso, o HIV continua a ser uma questão extremamente importante no mundo em desenvolvimento.
Você acredita que a rede social, na medida em que contribui para estimular mudanças políticas na África e Oriente Médio, também possa ajudar a promover uma mudança geracional que vá beneficiar as jovens?
A rede social tem um enorme potencial para promover mudanças, especialmente em regimes antigos e restritivos, nos quais as pessoas não têm possibilidade de expressar abertamente suas opiniões ou usar os meios de comunicação tradicionais para promover suas ideias. Minha fundação (www.desertflowerfoundation.org) usa com sucesso a rede social para alcançar os jovens e promover uma mudança na percepção sobre a mutilação genital, divulgar informações e, claro, para interagir uns com os outros. Leio todos os comentários postados no Facebook e é muito bom ver tantas pessoas engajadas na luta contra a mutilação genital feminina e para promover os direitos das mulheres.
Fonte: Estadão
Fonte: Estadão